terça-feira, setembro 13, 2005

O Inferno não é como você pensa

por Marcelo Dias Amado

Esqueça todas as bobagens que lhe contavam sobre o inferno quando você era criança. Aqui não há labaredas saindo do chão. Não existem demônios segurando lanças ou garfos pontudos. Eu não sinto cheiro de enxofre no ar e não ando pelado por aí, sendo chicoteado o tempo todo por seres disformes e sem vida nos olhos. Não tenho correntes amarrando meus pés a bolas de ferro ou algo parecido.

Vou tentar descrever o meu inferno. Ao primeiro olhar, um cenário comum a todos nós e que em nada se parece com aquela fantasiosa imagem presente nas historinhas que sua tia beata contava, sempre que você fazia algo que pudesse ser considerado pecado.

O meu inferno começa aqui nessa esquina movimentada de Belo Horizonte, onde todos os dias transitam centenas, talvez milhares de carros e pessoas apressadas sem tempo para sequer reparar na arquitetura variada desse ponto da cidade. Aqui nessa banca de revista eu sempre paro para ler as notícias estampadas nas primeiras páginas dos jornais, mas nunca comprei sequer uma edição. Já as revistas, essas já me interessaram no passado, mas hoje já não me atraem mais. São quase todas iguais e sem nenhuma novidade. O senhor que toma conta da banca, está sempre com a mesma boina, a mesma cara fechada pra mim e sempre fazendo palavras cruzadas. Acho que ele não vai muito com a minha cara, ou talvez tenha raiva porque nunca comprei nada.

Depois de olhar o resultado dos jogos de domingo, olho em direção ao posto policial alguns metros à frente de onde estou. Um policial está sentado olhando o movimento do outro lado da rua, onde uma pequena multidão se aglomera para ver mais um “encantador de cobras”, ou seria mais correto dizer: mais um “enganador de pessoas”?

Próximo ao posto policial, num ponto de ônibus, vejo um amigo. Ele acena para mim e vou ao seu encontro. Um aperto de mão disfarça a passagem de um bilhete onde está escrito: “Marea azul escuro, parado em frente à farmácia”. Depois de algumas perguntas sobre a família, amigos e o jogo de ontem, me despeço e sigo em direção ao banco, passando em frente ao Marea. Os vidros negros não me permitem saber quem estava lá dentro, mas noto o motor ligado. As respostas dadas pelo amigo no ponto do ônibus estavam carregadas de códigos e dicas de como deveríamos proceder em seguida.

Um mendigo me pede uma esmola. Me abaixo e lhe dou algo mais precioso que uma moeda. Um aviso para que saia do local, para o seu próprio bem. Confesso que não sei ao certo se ele segue meu conselho ou se fica parado na porta do banco, pois depois disso, tudo acontece rapidamente. Lá dentro, os gritos, o segurança que tenta sacar a sua arma, mas é atingido da cabeça por uma bala de AR-15, uma mulher que desmaia ao ver os miolos do homem no chão e o gerente do banco sendo espancado por um dos meus comparsas. Tiros para o alto tentam fazer com que as pessoas não tentem atrapalhar nossa fuga, mas a movimentação dentro da agência chama a atenção de quem está fora, inclusive a de policiais que param uma viatura em frente ao posto. Nosso motorista se apavora e começa a troca de tiros. Poucos segundos depois, ele cai ao lado do carro.

Depois do motorista, vejo meu melhor amigo tombar ao meu lado. Seu peito sangra, cravado por vários estilhaços de uma calibre 12. Nessa hora vejo flashes de minha infância, quando brincava com meu irmão de “polícia ladrão”. Ele sempre me matava, não importando se era a polícia ou o ladrão. Eu sempre perdia na brincadeira e agora vejo um amigo caído no chão. Ele é o ladrão. Mas eu também sou. Num reflexo, aponto minha arma para o policial perto do Marea e acerto-lhe o joelho, fazendo-o cair imediatamente. A única coisa que eu posso fazer é correr para o carro e é exatamente o que eu faço.

Agora estou aqui, correndo pela cidade feito um louco. Não me resta outra saída. Duas viaturas me perseguem, mas estou indo relativamente bem. Mais um pouco e saio do centro da cidade. Se eu pegar a estrada elas não terão chances de me alcançar. Não com esse carro. Preparamos seu motor durante toda a noite e nada pode acompanhá-lo. Estou bem. Estou seguro do que estou fazendo e que tudo vai dar certo. Pelo menos para mim, já que dois amigos já não tiveram essa sorte.

Olho no retrovisor e vejo as viaturas ficando para trás. Não consigo evitar um sorriso de satisfação no rosto. Mas nesse momento, tudo parece ficar congelado, ou pelo menos muito lento. Não escuto mais o som do motor. Não escuto as sirenes. Sinto um frio na espinha e meus olhos arregalam diante daquele menino pedindo esmolas na rua. É apenas um menino, mas seu rosto... Seu rosto é demoníaco. Olhos muito brilhantes e dentes afiados. Não consigo tirar os olhos dele até que passo ao seu lado. Ele me encara e escuto claramente uma voz dentro da minha cabeça: “Você nunca mais sairá daqui”.

Ao voltar o rosto para frente, vejo a figura de meu pai me dando a mão para atravessar a rua. Estou com um sorvete enorme nas mãos. Ele sorri, abaixa e me dá um beijo.

A traseira do caminhão surge diante do carro tão rapidamente quanto a imagem de minha mãe aparece em minha mente. Ela tem nas mãos um bolo de aniversário. Meus 15 anos. Eu era o garoto mais querido da família.

Vejo o capô do Marea encontrando o pára-choque do caminhão. Os primeiros centímetros de aço se retorcendo, dobrando como papel, ao mesmo tempo em que me vejo sorrindo para meu irmão no dia em que me formei. Ele me abraçou e disse que eu era o melhor irmão do mundo e que estava muito orgulhoso de mim. Eu era um bom filho. Um bom irmão. Um excelente aluno.

Meus olhos arregalados agora estão vendo o pára-brisa chegando mais perto. Meu peito bate contra o volante. Minha namorada... Linda. Linda como nunca vi outra igual. Ela estava feliz. Sorria para mim no dia em que a pedi em casamento. Fizemos planos, começamos a guardar dinheiro para o futuro. Ela me amava demais... Mas não suportou ficar ao meu lado quando eu comecei a mudar.

Os estilhaços de vidros penetram em um dos meus olhos. Sinto o sangue escorrer quando me lembro do meu primeiro assalto. Eu estava nervoso e atirei no olho do rapaz que estava pegando o dinheiro na gaveta. Achei que ele estava pegando uma arma, mas ele não queria me fazer mal. E eu não queria matá-lo.

Minha cabeça volta com violência para trás, com a pancada do pára-choque do caminhão na minha testa e meu braço é rasgado pela ferragem da porta, que se dobra com o impacto. Lembro do dia em que a polícia deu batida na casa de uma vadia com quem comecei a sair depois que minha namorada me deixou. Eles entraram bem na hora que eu estava aplicando. A agulha rasgou minha veia e tive que ser levado para o hospital.

Minhas pernas estão sendo esmagadas pelo motor do carro e vejo meu pai chorando quando me expulsou de casa. Minha mãe dopada com tranqüilizantes enquanto eu espancava o irmão que tanto me amava. Eu só queria um pouco de dinheiro. Eu precisava comprar mais.

O pára-choque do caminhão virou uma lâmina gigante e meu pescoço está prestes a ser cortado. Estou vendo como tudo começou. Foi naquela festa na casa de um amigo. Eu estava dançando, me divertindo sem precisar de mais nada para tornar a noite melhor, mas a turma insistiu e eu acabei experimentando pela primeira vez.

De relance, consigo ver no retrovisor da porta, retorcido e virado para o meu lado, meu pescoço pendendo para o lado.

Minha vida se vai. Na verdade ela se foi muito antes desse dia. E agora vivo aqui nesse inferno... Aliás, vou tentar descrever como é meu inferno.

Aqui nessa banca de revista eu sempre paro para ler as notícias estampadas nas primeiras páginas dos jornais, mas nunca comprei sequer uma edição...

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Marcelo Dias Amado é também conhecido como O Guardião do Estronho, pois ele é o criador e mantenedor do site Estronho e Esquésito.