sexta-feira, fevereiro 25, 2005

Linda quando chora

por Camila Fernandes

Ela é linda quando chora.

Primeiro os lábios tremem involuntariamente. Depois os olhos se apertam, querendo esconderijo debaixo das sobrancelhas. E brilham feito vidro molhado. Grande efeito! Muito sedutor.

Aí vem o nariz. Tão miúdo, coberto de sardas. Depois das primeiras lágrimas a ponta incha e fica vermelha. Como um moranguinho. Dá até vontade de morder!

E daí é o rosto inteiro avermelhado, inflamado de ira. Molhado, brilhante de lágrimas. O beicinho contrariado. Os cílios salientes. Ela nunca pareceu tão cheia de vida quanto agora.

No começo era só tara minha. Mas virou mania.

Ela nunca foi chorona. Era uma moça doce, cheia de energia, bacana. Ainda se usa bacana? É gíria do meu tempo. Ela não tinha vontade de parar pra se lamuriar. Mas era frágil, mulher, né? Num dia particularmente sensível – nota vermelha na prova, briga com o namorado, qualquer bobagem assim – ela vibrou na minha freqüência. Sem querer, claro. Ninguém é louco de me atrair de propósito. Quando vi, já estava lá, colado a ela. Ela começou a soluçar. Toquei no seu ombro. Que onda! Energia pura. Juro, pensei que ia ter um orgasmo. Tive. Ou o que quer que um cara possa experimentar no meu estado.

Achei que era maldade eu me sentir tão maravilhoso enquanto ela se sentia tão miserável. Mas foi assim. A menina chorou muito e eu entrei num gozo surreal. Depois me afastei. Pesou na consciência. Ela foi se acalmando. Mas fiquei por perto, curioso, até certo ponto desejoso de ver se aquilo podia acontecer de novo.

Nunca mais fui embora. Ficava por perto quando ela telefonava para as amigas xingando a mãe, o pai, o namorado, a própria vida. Sempre arranjava um novo problema pra cultuar. A atração era mais forte do que eu. Precisava ficar perto dela enquanto fungava, gania, lamentava. Talvez por isso ela ficasse enchendo o saco de todo mundo. Eu roubava dela. Ela, dos outros. E o fluxo de energia não parava.

A paciência das pessoas tem limite. Logo ela não tinha mais colegas pra atormentar. Só havia eu ao lado dela nas noites sem sono, curtindo a seleção de canções pra se enfiar de cabeça da fossa emocional, dividindo o travesseiro lavado de lágrimas. Só nós dois. Mas aí vinha aquele namorado. Ligava pro celular tarde da noite, lenga-lenga amorosa, fazendo perguntas, e ela disfarçava, engolia soluços, dizia que estava bem. Eu precisava dar um jeito nele. Cinema amanhã? Beleza. Vou junto.

E fui. Filme de comédia. Eu ria. Ela chorou o tempo todo. O cara deu um basta no meio da sessão. Saiu da sala, ela foi atrás aos prantos, eu pendurado no seu ombro. Bateram boca no estacionamento. Eu torcia, acaba com ele, termina com ele de vez...

Eu me apaixonei, confesso. Nem todas são tão lindas quando choram. Nem todas dão esse tesão no desespero. Desde a década de 1960 eu não tinha nada assim. Caí fora muito jovem. A vida era chatinha, não tinha coisa melhor pra fazer a não ser encher a cabeça de bobagem, então peguei o carro do meu velho e pum, entrei com tudo num poste. Fiquei decepcionado com a morte. Esperava coisa melhor. Vagar por aí cutucando bêbado, provocando brigas nas sarjetas, apavorando recém-finados em enterros. A coisa mais divertida que tinha pra fazer era colar em pai-de-santo e pedir pinga em terreiro.

Fui vadio por um bom tempo. Tudo mudou quando eu a conheci. Eu a queria só pra mim. E consegui. Depois daquele quebra-pau o sujeitinho parou de telefonar. Ficamos a sós, finalmente.

Então ela parou de ir à faculdade. Preferiu gastar com o analista. Era a tal da depressão, falavam. Depressão o cacete. Era eu. Sempre ao lado dela. Agarrado ao seu braço. Acariciando a sua nuca. Devorando-a sem pressa.

Hoje ela escreveu no diário:

"Não agüento mais. Quero morrer."

É o meu dia! Tem que ser! O dia em que ela vai ser minha!

Certo, estou me precipitando. Precisamos trabalhar um pouco mais nisso. Mas não dou uma semana pra ela se entupir de comprimidos até desmaiar ouvindo P.J. Harvey. Ou pode ser naquela banheira do quarto da mãe dela, pulsos cortados, a água levando o sangue devagarzinho. É isso! Vou lhe dar essa sugestão. Sussurrar no ouvido dela toda noite. Até chegarmos lá.

E quanto ela vier para este lado eu vou estar de braços abertos. Vou consolá-la, apertá-la contra o peito e explicar como as coisas são por aqui. Vamos fazer tudo juntos. Vai ser bom pra nós...

Enquanto não acontece, fico aqui, no meu cantinho, paciente, previdente, observando.

Ela é tão linda quanto chora!

Camila Fernandes é uma Necroautora.