terça-feira, fevereiro 08, 2005

Mulheres de matar

por Camila Fernandes

Quando a vi pela primeira vez eu não quis tocar seu cabelo preto, beijar sua boca rosa ou afagar sua pele acetinada (sem tocá-la eu sabia que era como cetim). Não, nada dessa porcaria romântica. Eu quis matá-la. Por quê? Foi uma idéia. Dessas que vêm à cabeça da gente por razão alguma ou por razões demais.

Razões que não chegam nem mesmo para justificar antipatia.

Razões de sobra.

Porque você era bela. Se era. De uma beleza que não saía nas fotografias. Até saía, mas pela metade. Seu rosto era atraente, seu corpo, curvilíneo, mas sua alma era linda de um homem não agüentar – que se dirá de uma mulher?

Eu não me ocuparia de você se fosse bela só na fachada. Mas não. Você precisava ter aquele sorriso autenticamente simpático, aquela voz cristalina, o vocabulário arrojado, sem arrogância, os olhos muito vivos feito os de quem nunca pára pra chorar, a quase erudição que não chegava a intimidar os homens do seu convívio, mas a assinalava em qualquer círculo social como uma mulher inteligente. Bonita, divertida, perspicaz. Dava pra ouvir os pretendentes à sua volta murmurando com seus botões um coro deslumbrado: mulher assim não existe!

Mas existia.

Eu não pensava assim. No começo, era só implicância da minha parte. Você tinha de ter um defeito. Bem feio, como uma mãe abandonada no asilo. Parei para observá-la. Descobri que você telefonava pelo menos duas vezes por semana para a mãezinha no interior perguntando se ela precisava de alguma coisa, fazendo recomendações, mandando beijinhos, prometendo visitas de feriado.

Então pensei que você devia detestar animais. Isso é um defeito, certo? Mínimo, mas pra muita gente não amar cães e gatos é uma forma de antipatia contra a própria vida. Sim. Era isso. Apostei como você chutava vira-latas na rua. No mesmo dia, recebi seu e-mail sobre adoção de filhotinhos sem lar, garantindo que você mesma ia ficar com três gatos sem raça.

Então eu tive certeza de que a sua casa era uma bagunça, um antro inabitável. Você seria uma péssima esposa ou mesmo colega de quarto para qualquer pessoa neste mundo. É. Não cozinhava, não arrumava a cama, não lavava sequer um prato sujo. Não tinha a menor chance de se casar ou mesmo viver civilizadamente com outra solteirona. Ia morrer sozinha, ah, se ia.

Quando você convidou todos do seu departamento para um almoço de domingo. Não fui, é claro. Mas vi as fotografias. Parecia livro de receita. Coisa de classe. Comida para comer com os olhos e com a boca. E a cozinha, um brinco. Patinhos de porcelana delicadamente pintados à mão distribuídos em cantoneiras de armário, a sala de chão encerado, os elogios à refeição impecável, escritório adentro, a semana toda...

Bem, certinha demais. Quem gosta de alguém tão milimetricamente ajustado? Nem uma barriguinha de cerveja? Nem uma cárie nos dentes? Mulher que não bebe, não come bobagem, não vai pra cama tarde, toda responsável, fina, vai ver ela nem transa, oh, que tédio!!!

Mas não. Nas happy hours você era a sensação. Ria da piada alheia, receptiva. Depois contava uma melhor. Bebia sem perder a cabeça. E dançava como uma bacante em êxtase, arrastando um séqüito de admiradores pista afora. Sem pose. Sem falsidade.

Que decepção. Você era perfeita!

Mas eu ainda a aturava.

Tudo mudou quando você me abordou no corredor. Era sexta-feira. Aquele sorriso insuportável na sua cara. Disse que sempre me via entrar e sair da sala e que mesmo não trabalhando comigo sabia que eu poderia me divertir se fosse com vocês ao bar sei-lá-onde. Afinal, estava sempre ali, não era parte da equipe, mas e daí, todos são tão legais, pensei em convidar você, vamos, vai ser demais!

Foi a gota d’água.

Eu era feia. Por dentro, mais do que de qualquer outro ângulo. Cumprimentava-a por obrigação profissional. Passava me arrastando pela sala, pela vida, recolhendo pastas, coração aleijado, aleijado, sim, sem esperança alguma de ser boa gente. Muito menos vontade. Você não devia falar comigo. Devia simplesmente ignorar minha existência.

Por que foi fazer isso? Por que tinha de ser tão doce, tão amigável, linda, cativante, tão...

Mulher assim não existe.

Eles não tinham razão. Agora, têm. Mulher assim não existe mais.

Hoje achei um ossinho pontiagudo de frango dentro da pia. Pensei em como ele teria ficado bonito fincado no seu pescoço. Será que isso mata? Tarde demais pra descobrir. Você já era. Nem foi difícil. Serão de quinta-feira pra não ter de ficar até mais tarde na sexta, né? E ainda volta pra casa a pé? Certo. Achei seu defeito: excesso de autoconfiança.

Eu a peguei na saída. Foi com a pá mesmo. Um golpe e vupt, foi ao chão. Ainda dei mais três pancadas. Eu não era tão autoconfiante, sabe? Era precavida. Quis ter certeza do seu fim. Usei a mesma ferramenta pra enterrar o corpo. Terreno baldio é o que mais tem nesta cidade.

Já mulher assim... não, isso não tem!

Nas semanas seguintes, velório, luto no escritório, choradeira ocasional, muitos amigos com saudade. Todo mundo falando em tom baixo como pra não acordar criança. Você faz falta para muita gente. Não para mim. Agora vivo no silêncio, sem os risinhos pelos corredores, a bajulação odiosamente sincera.

Mulheres de matar, eu e você: eu mato, você morre.

Mulheres de matar. Você e todas as outras belas do mundo.

É assim que eu gosto.

Fim.

Camila Fernandes é uma NecroAutora e publica seus textos aqui e no Fábrica de Letras às quartas-feiras (www.fabricadeletras.blogspot.com)